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Texto de apresentação da exposição

Aterracéus

 

A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivos para sustentar o céu, ele vai desabar.

 

(Davi Kopenawa, A queda do céu: palavras de um xamã yanomami)

Existe entre o céu e a terra alguns modos de vida que de diferentes modos encurtam esse espaço. Ainda existem outros, como o dos Yanomami, que colocam como um de seus sentidos de vida sustentar o céu para que ele não desabe sobre o mundo, desde que o branco, teimoso e inconsequente, resolveu escavar a terra para dela tirar ferro. Nesse imenso interstício entre o céu e a terra, se cria espaço para proliferar ar, ventos, deslocamentos, inspirações. Nele também prolifera a vida em expressões de inventividade, criação e fabulação. Um espaço onde o homem deseja, engendrando futuros que pendulam entre a utopia e a distopia.

É na idade do metal que o homem passa a cavar a terra e a explorá-la com afinco para forjar o ferro e com ele produzir aquilo que até hoje chamamos de progresso, culminando, milhares de ano depois, no mundo tal qual o conhecemos. Cavar a terra para extrair minério por meio de “buracos de humanidade” fez com que os humanos construíssem, pouco a pouco, o sentido de uma existência, de desejo de ocupação territorial e de acúmulo que aniquilam a multiplicidade de modos de vida para o avanço de seu projeto civilizatório que visa uma única humanidade.

 

O Ferro existente no solo é o conector comum na ocupação do homem branco em dois diferentes locais: na ilha de El Hierro[1] (a ilha do Ferro), a menor ilha do arquipélago Canário, pertencente a Espanha, e onde foi instalado uma Central Hidroeólica que gera energia através da força do vento e da água para dessalgar a água do mar, e no bairro Jardim Canadá[2], em Nova Lima, Minas Gerais, no Brasil, em uma região onde mais se concentram minerações ferríferas. Em ambos, a especificação da composição da terra é determinante da ocupação nela feita.

 

Olhar para esses dois diferentes territórios que possuem esses conectores em comum é o que propõe os artistas e pesquisadores Beatriz Pedrosa e Gustavo Torrezan, utilizando-os para investigações que se desdobram em trabalhos que apresentam diferentes modos de pensar a imagem, o ver, a construção, o uso e a invenção de linguagem e da imaginação.

Com imagens que expandem os contornos da fotografia documental, Pedrosa produz caminhos que percorrem a água, na ilha de El Hierro, e deles, olhares-sentires-imagens que provocam os índices representacionais, deslocando-os de seus cenários concretos em proveito de um “viver em El Hierro que é estar fincado na terra, mas sempre olhando para o céu”, ou melhor, para o intervalo entre o céu e a terra que propõe este site-exposição.

 

As fotografias criadas a partir do campo experimental fotográfico praticado por Pedrosa na ilha, nos convidam a elevar a potência do olhar e a abrir ao máximo os campos sensíveis para sermos atravessados pelas pulsações que compõem o território ilhéu e assim fissurar relatos prontos e acabados que se dirigem a estes lugares, assumindo o movimento próprio da imagem que se constitui de uma multiplicidade de camadas temporais complexas pelas quais a imagem transita desterritorializando e reterritorializando saberes, sejam eles sobre a água, sobre a terra, sobre o céu ou sobre as gentes.

 

Pode-se dizer que o impulso dos homens em direção às ilhas é de certa forma uma busca de sentir-se separado suficientemente ao ponto de (re)criar, sempre correndo o risco de submeter a criação aos movimentos e funcionamentos experimentados nos continentes, transformando a ilha em uma espécie de microcontinente, já que de saída, para criar, é preciso separar-se do já visto, já sabido, com o único propósito de ser afetado pelos componentes que constituem os espaços ilhéus. Com imagens desterritorializadas e portadoras de ritmos e pulsações insulares, as fotografias de Pedrosa já não se colocam mais como afirmação, mas no esforço de verificação, no sentido que Deleuze[3] lhe dá, que é aquele que nada tem a ver com um dado a priori, mas com um sonhado, um imaginado que nos movem em direção a algo, e que prolongam as linhas de fabulação.

 

Se a condição insular de El Hierro e de outros pedaços de terra sobre as águas aguça o imaginário de quem busca projetar sobre estes lugares um protótipo de mundo em escala reduzida, ignorando que as ilhas, por terem modulações próprias, só podem ser protótipo delas mesmas,  essa ideia de protótipo de mundos não é uma questão que diz respeito apenas às ilhas, mas também habita o trabalho “convenção mundial dos países imaginários” de Torrezan. Nele, o artista promove um exercício que busca alargar o campo de possibilidades ante as impossibilidades existentes, ou melhor, busca instigar a imaginação política para refletir sobre assuntos tão urgentes e, por que não, traumáticos, como, por exemplo, a ação das mineradoras na busca por ferro que culmina em crimes como o que aconteceu na cidade de Brumadinho, vizinha a Nova Lima, e que por isso recebeu, na Escola Bemvinda, estudantes sobreviventes deslocados por causa do acontecido.

Na escola Bemvinda, localizada a duas quadras da mina de ferro Capão Xavier, o artista não buscou tratar dos traumas ou da realidade falando diretamente dela, mas se ocupou das invenções, para que com elas pudesse ativar criações, espécies de protótipos, que experimentassem novas possibilidades de futuro e de mundo. Para isso, partiu de exercícios de fabulação que buscaram abarcar o “entre” das forças criadoras, pois é ainda necessário afirmar a importância da produção da fabulação na educação, por estudantes, professores e pela comunidade escolar, para que possamos sair da condição de sujeitos alienados, alijados de nossa potência inventiva e passemos a sujeitos criadores que utilizam suas forças de fabulação sobre si, e, então, no mundo, instaurando novas possibilidades.

 

Para realizar o trabalho, frequentou por cerca de vinte dias a turma da professora Márcia Costa, com estudantes do 3 ano do Ensino Fundamental, fase em que estão terminando seu letramento. E enquanto aprendem a escrever com mais uniformidade e velocidade, acabam por perder o hábito de desenhar e de explorar de modo menos formatado a imaginação, o aprendizado autônomo e cada pessoalidade e singularidade. Nos dias em que dialogou com essa turma, trabalhou junto com os estudantes a importância do dissenso convivencial – de uma manutenção do dissenso e de um aprendizado conjunto por meio dele – para que, a partir da imaginação, pudesse estimular a cooperação, a resolução de conflitos, a coexistência, o protagonismo, o respeito e o cuidado, além de aspectos que fazem parte do chamado currículo escolar para aquela idade.

 

“Convenção mundial dos países imaginários” como um mote e um estímulo para que os estudantes sejam atuantes na construção de um mundo melhor. Um mundo onde há o respeito às diferenças e a percepção de que existem múltiplas perspectivas no mundo, e que é possível não dissociar o homem da natureza, tal como lembra o pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos ou Nego Bispo, ao dizer que seu povo não é “dono da terra”, mas sim “é da terra”[4], e, por assim ser, pode ter outra relação com ela que não a de exploração, exaurindo-a, mas de cuidado mútuo.

 

Torrezan constrói o trabalho a partir de proposições, partes, realizadas na sala de aula, no pátio e no parquinho da escola, compondo o todo a partir das articulações de cada componente disparador. Traça mediações entre cada parte, relacionando-as, e com elas forma um todo que constitui o trabalho cuja parcela é aqui apresentada neste site-exposição. Entre as proposições que realizou, estão a de inventar a língua do país imaginário, a escrita, a música, a veste do representante, a bandeira de luta, os animais existentes, os ecossistema, os valores, o que se entende por justiça, luta, amor, crença, força, fragilidade, entre outros disparadores para discussão de assuntos comuns e/ou conflitos que surgem e se resolvem em comum, na convenção entre os representantes dos países imaginários.

 

De este modo, os trabalhos de Beatriz Pedrosa e Gustavo Torrezan criam agenciamentos, encontros, conexões, apostas numa educação que seja capaz de perturbar a arrogante surdez dos brancos, como nos convida a pensar Davi Kopenawa, como prática de combate aos sistemas coloniais. Assim, a educação tal qual se acredita, e neste site-exposição se exercita, é aquela capaz de fazer conectar céu e terra, sem deixar que o céu desabe, sustentando, assim, a possibilidade de haver espaços intersticiais de imaginação para a experimentação de um certo grau de utopia que acolhe a diversidade e faz dela lugar de existência, de formação de comunidades que, de algum modo, transmutam energia para contribuir na proliferação de subjetividades.

 

Aterracéus é fazer existir esse intervalo entre céu e terra em corpos-materiais de subjetividades. Também é criar dispositivos que atuem contra as constrições que certos tipos de humanidade teimam em engendrar, assim colaborando para sustentar o interstício de ar, ventos, inspirações, em produções que buscam dar voz e vez a imaginação política, sem deixar de problematizar o presente que se vivencia e a  tristeza imobilizadora que a realidade tende a provocar.

 

Aterracéus é produzir gestos de expansão para fazer germinar no mundo possibilidades de que nele possam existir e proliferar infinitos mundos. Pois…

 

 

...se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir a subjetividade - as nossas subjetividades. Então vivê-las com liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos.

 

(Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo)

 

 

 

 

Beatriz Pedrosa e Gustavo Torrezan

verão espanhol e primavera brasileira de 2020.

 

 

 

 

 

[1] O trabalho aqui apresentado integra a tese Narrativas postdocumentales. De la sostenibilidad subjetiva y sus efectos sobre las relaciones socioculturales en el marco de la ciudad creativa, realizada na Universidade de La Laguna, Tenerife – Espanha, durante o período 2014-2018, com auxílio do CNPq.

[2] No Jardim Canadá fica localizado o Jardim Canadá Centro de Arte e Tecnologia (Ja.Ca), espaço independente de produção e pesquisa de arte contemporânea que realiza residências artísticas selecionando artistas a partir de edital. Gustavo Torrezan foi selecionado no edital de 2019 e desenvolveu o trabalho Convenção mundial dos países imaginários durante sua residência. Para saber mais sobre o Ja.Ca, acesse: <www.jaca.center>

[3] DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.

[4]Antônio Bispo dos Santos. Somos da Terra. Disponível em: https://piseagrama.org/somos-da-terra/.

 

 

Beatriz Pedrosa

é fotógrafa, doutora em Artes y Humanidades pela Universidad de La Laguna (Espanha), onde desenvolveu a tese Narrativas postdocumentales. De la sostenibilidad subjetiva y sus efectos sobre las relaciones socioculturales en el marco de la ciudad creativa en la isla de El Hierro (bolsista CNPq), e mestre em Antropologia Visual pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Participou de exposições coletivas e individuais, dentre elas Fotografias e assuntos de paisagens a Sul, com a obra “a 20º 26’ al Oeste de Paris”, em Tarifa (Portugal), e Habitare, em Tenerife (Ilhas Canárias, Espanha). Textos de sua autoria integram os livros El derecho, la ciudad y la vivienda en la nueva concepción del desarrollo urbano. Desafíos transnacionales y transdisciplinarios de la gobernanza en la Nueva Agenda Urbana (Barcelona, Espanha), Violaciones de Derechos Humanos, Poder y Estado (Minas Gerais, Brasil) e Conversas Infinitas: divulgação científica, educação, mudanças climáticas e... (Campinas, Brasil).

 

Contato:

+34 674 02 53 11

beatrizspedrosa@gmail.com

 

Gustavo Torrezan
é artista, pesquisador, educador. Graduado em Artes Plásticas, mestre em Educação e doutor em Poéticas Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É pesquisador no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.

Em sua prática artística, volta-se a refletir sobre as estruturas de poder que configuram historicamente as organizações coletivas, bem como suas constituições culturais e identitárias. Realiza trabalhos híbridos nas quais se vale de diferentes materiais e disciplinas para discutir sobre relações de domínio, a partir das quais se modulam os processos de subjetivação da sociedade. Assim, tem interessado em observar o papel do Estado, de seus regimes administrativos, de suas autoridades e instituições. Nesse processo, evoca os campos da sociologia e da geopolítica em suas pesquisas conceituais, fazendo, muitas vezes, uso de símbolos oficiais da nação para tencionar suas conotações. Para além da experimentação com a síntese formal e com procedimentos de revisão simbólica, propõe também o debate sobre os mecanismos de poder em dispositivos do sistema das artes, aproximando-se das questões de arquivo, memória, espaço e lugar. Por vezes, seus trabalhos insurgem de circunstâncias comunitárias específicas e aproxima-se dos processos sociais ligados a uma determinada localidade. Nesse sentido, as noções de colaboração e de dialogia também vêm sendo exercitadas em sua produção.

Contato:

+ 55 (11) 952 51 10 05

ghtorrezan@gmail.com

www.gustavotorrezan.com

 


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Este site-exposição faz parte do Ciclo de Debates: Utopias e distopias na educação em tempos de pandemia, promovido pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, com financiamento da CAPES-Print, que será realizado entre os meses de outubro e dezembro de 2020. O evento conta com mesas compostas por pesquisadores e pesquisadoras nacionais e estrangeiros.as e visa contribuir com a reflexão sobre os desafios que emergem do contexto atual para o campo da educação.

 

Site do evento é https://www.utopiasedistopiasfeunicamp.com/

Pesquisa e projetos CAPES-Print

 

 

Comitê organizador do evento: Alexandrina Monteiro, Antônio Carlos Rodrigues de Amorim, Heloísa Helena Pimenta Rocha, Nadège Mézié, Nora Krawczyk, Selma Venco, Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo.

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